O mundo pós-americano (introdução)
Como a globalização, impulsionada pelos Estados Unidos, está produzindo
potências emergentes - que começam a mudar o equilíbrio político mundial Os
americanos andam mal-humorados. Em abril, uma pesquisa revelou que 81% da
população acredita que o país está “no caminho errado”. Nos 25 anos em que a
pesquisa é feita, a resposta do mês passado foi, de longe, a mais negativa. Há
razões para pessimismo – um pânico financeiro e a ameaça de uma recessão, uma
guerra aparentemente infindável no Iraque e a ameaça do terrorismo. Porém, os
fatos – índice de desemprego, número de execuções hipotecárias, mortes por
terrorismo – não são tão ruins para explicar o mal-estar. A ansiedade brota de
uma sensação de que forças poderosas e desagregadoras estão agindo no mundo. Em
quase todos os aspectos da vida, padrões do passado estão sendo embaralhados.
“Turbilhão é rei, tendo expulsado Zeus”, escreveu o dramaturgo grego
Aristófanes há 2.400 anos. E – pela primeira vez na memória viva – os Estados
Unidos não parecem liderar o ataque. Os americanos percebem que um novo mundo
está nascendo, mas temem que ele esteja sendo formado em terras distantes e por
povos estrangeiros. O prédio mais alto do mundo fica em Taiwan. A maior empresa
do mercado acionário está em Pequim. A maior refinaria do mundo está sendo
construída na Índia. O maior avião de passageiros é feito na Europa. O maior
fundo de investimentos do planeta está em Abu Dhabi, e a maior indústria
cinematográfica é Bollywood, Índia. Ícones americanos foram usurpados: a maior roda-gigante
do mundo fica em Cingapura, o maior cassino está em Macau. Apenas duas das dez
pessoas mais ricas do planeta são americanas. Essas listas são arbitrárias e um
tanto tolas, mas há apenas dez anos os EUA teriam encabeçado quase todas. Esses
factóides refletem um deslocamento de poder e atitudes. Nos EUA, ainda se
debate o antiamericanismo. O mundo passou do antiamericanismo para o
pós-americanismo.
I. O FIM DA PAZ AMERICANA
Na década de 1980, quando eu visitava a Índia – onde cresci –, a maioria dos
indianos estava fascinada pelos EUA. Freqüentemente me perguntavam sobre...
Donald Trump. Arrojado, rico e moderno, ele simbolizava a sensação de que, se
você quisesse o maior e melhor de qualquer coisa, tinha de olhar para os EUA.
Hoje, fora os personagens do mundo do entretenimento, não existe interesse
comparável por personalidades americanas. Existem dezenas de empresários
indianos mais ricos que Trump. Os indianos são obcecados por seus próprios
bilionários vulgares. E esse recém-descoberto interesse em sua própria história
ocorre em todo o mundo.
Considere o seguinte: em 2006 e 2007, a economia de 124 países cresceu mais de
4% ao ano. O economista Antoine van Agtmael, que cunhou o termo “mercados
emergentes”, identificou 25 empresas que provavelmente serão as próximas
grandes multinacionais. Brasil, México, Coréia do Sul e Taiwan têm quatro
empresas cada um; Índia, três; China, duas; e Argentina, Chile, Malásia e
África do Sul, uma cada um. É muito mais que a ascensão da China ou da Ásia. É
a ascensão do resto – do resto do mundo.
Vivemos o terceiro grande deslocamento de poder da história moderna. O primeiro
foi a ascensão do Ocidente, por volta do século XV, que produziu o mundo como o
conhecemos hoje – ciência e tecnologia, comércio e capitalismo, as revoluções
industrial e agrícola. O segundo ocorreu no fim do século XIX, com a ascensão
dos EUA. Nos últimos 20 anos, o status americano de superpotência em todas as
esferas passou praticamente incontestado. Durante essa “Pax Americana”, a
economia global se acelerou drasticamente. E essa expansão é a mola propulsora
por trás do terceiro grande deslocamento de poder – a ascensão do resto.
Militar e politicamente continuamos em um mundo unipolar. Mas, em todas as
outras dimensões, a distribuição do poder está se distanciando do domínio
americano. Isso produzirá uma paisagem bastante diferente, uma paisagem
definida e dirigida a partir de muitos lugares e por muitos povos.
O mundo pós-americano é uma perspectiva inquietante para os americanos, mas não
será definido pelo declínio dos EUA, e sim pela ascensão dos outros países. É o
resultado de tendências dos últimos 20 anos que criaram um clima internacional
de paz e prosperidade.
Eu sei. Não é o mundo que as pessoas percebem. Dizem que vivemos tempos perigosos.
Terrorismo, Estados bandidos, proliferação nuclear, pânico financeiro,
recessão, terceirização, imigrantes ilegais, tudo figura com destaque no
discurso americano. A Al Qaeda, o Irã, a Coréia do Norte, a China e a Rússia,
todos são ameaças. Mas, quão violento é o mundo realmente?
Uma equipe da Universidade de Maryland rastreia mortes causadas pela violência
organizada. Os dados mostram que todos os tipos de guerra declinam desde meados
da década de 1980 e que atualmente desfrutamos os níveis mais baixos de
violência desde a década de 1950. As mortes resultantes do terrorismo têm
aumentado. Mas um exame mais minucioso mostra que 80% dessas fatalidades são no
Afeganistão e no Iraque, zonas de guerra – e os números totais permanecem
pequenos. O polivalente professor de Harvard Steven Pinker arriscou-se a
especular que provavelmente vivemos “na era mais pacífica da existência de
nossa espécie”.
Por que não é essa a sensação? Parte do problema é a quantidade de informações.
Os últimos 20 anos produziram uma revolução de informação que traz notícias e
imagens de todo o mundo o tempo todo. A divulgação quase instantânea das
imagens e a intensidade do ciclo noticioso de 24 horas se combinam para
produzir uma constante tensão. Qualquer perturbação climática é “a tempestade
da década”. Toda bomba que explode é NOTÍCIA EXTRAORDINÁRIA. E, como a
revolução da informação é nova, estamos apenas começando a descobrir como
colocar tudo dentro do contexto. O risco de morrer em um ataque terrorista para
um americano é menor que morrer afogado na banheira. Mas a sensação não é essa.
As ameaças são reais. Os jihadistas islâmicos são um bando sórdido. Mas está
cada vez mais claro que representam uma minúscula fração do 1,3 bilhão de
muçulmanos do mundo. Eles podem causar danos muito reais. No entanto, os
esforços dos governos do mundo puseram-nos para correr. Os jihadistas foram
obrigados a se dispersar, operar em pequenas células e usar armas simples. Eles
não têm sido capazes de atingir alvos grandes, especialmente os americanos.
Então explodem bombas em cafés, mercados e estações de metrô. Ao fazer isso,
matam habitantes locais e afastam muçulmanos comuns. Acompanhe as pesquisas de
opinião pública. O apoio à violência caiu drasticamente nos últimos cinco anos
nos países muçulmanos.
Desde o 11 de setembro, a Al Qaeda dirigida por Osama Bin Laden não foi capaz
de desfechar um único ataque terrorista de grandes proporções no Ocidente ou em
qualquer país árabe – seus alvos originais. O fato de terem sido silenciados
por quase sete anos mostra que, na batalha entre governos e grupos terroristas,
os primeiros não precisam se desesperar.
Alguns apontam para países como o Irã. Esses Estados bandidos constituem
problemas reais, mas olhe o contexto. A economia americana é 68 vezes maior que
a do Irã. Seu orçamento militar é 110 vezes o dos mulás. Não se compara aos
perigos representados por uma Alemanha em ascensão na primeira metade do século
XX ou uma União Soviética expansionista na segunda metade. Se hoje fosse 1938,
o Irã seria a Romênia, não a Alemanha.
Outros pintam um mundo de ditadores em ação. A China, a Rússia e vários
potentados petrolíferos estão ganhando força. Temos de nos engajar em uma luta
maniqueísta que definirá o próximo século. Mas as potências ascendentes de hoje
são relativamente benignas. No passado, quando os países enriqueciam, eles
queriam se tornar potências militares, derrubar a ordem existente e criar seus
próprios impérios. Mas, desde a ascensão do Japão e da Alemanha nas décadas de
1960 e 1970, eles optam por enriquecer dentro da ordem existente. A China e a
Índia estão nessa direção.
Compare a Rússia e a China com o ponto em que estavam há 35 anos. Naquela
época, ambas eram potências ameaçadoras, conspirando contra os EUA, financiando
insurgências e guerras civis. Agora, os dois países estão mais integrados na
economia global que em qualquer momento dos últimos cem anos. Qual é seu
potencial para causar problemas? Os gastos militares da Rússia são da ordem de
US$ 35 bilhões, ou 0,05% do que o Pentágono gasta. A China tem cerca de 20
mísseis nucleares que podem alcançar os EUA. Os americanos têm 830 mísseis que
podem chegar à China. Quem deve se preocupar com quem?
II. AS BOAS NOTÍCIAS
Em julho de 2006, falei com um membro do governo israelense, pouco depois da
guerra entre Israel e o Hezbollah. Ele estava genuinamente preocupado com a
segurança do país. Então perguntei sobre a economia. “Isso nos deixou
perplexos”, disse ele. “O mercado de ações estava mais alto no último dia da
guerra que no primeiro!” O governo estava assombrado, mas o mercado não.
A Guerra do Iraque produziu um caos. Mais de 2 milhões de refugiados se
amontoaram em países vizinhos. Mas, ao viajar pelo Oriente Médio nos últimos
anos, me dei conta de quão pouco os problemas do Iraque desestabilizaram a
região. As pessoas denunciam furiosamente a política externa dos EUA. Mas os
vizinhos do Iraque – Turquia, Jordânia e Arábia Saudita – desfrutam de uma
prosperidade sem precedente. Os países do Golfo estão modernizando suas
economias e sociedades. Há pouca evidência de instabilidade e fundamentalismo.
Pela primeira vez na história, a maioria dos países do mundo pratica uma
economia sensata. Os resultados são claros. A porção de pessoas que viviam com
US$ 1 por dia despencou de 40%, em 1981, para 18% em 2004. A pobreza está em
declínio em países que abrigam 80% da população mundial. A economia global mais
que dobrou nos últimos 15 anos! O comércio global cresceu 133% no mesmo
período. A expansão do bolo econômico global se tornou a força dominante.
Guerras, terrorismo e conflitos causam rupturas temporárias, mas eventualmente
são dominados pelas ondas da globalização. Essas circunstâncias podem não
durar, mas vale a pena compreender a aparência do mundo nas últimas poucas
décadas.
III. UM NOVO NACIONALISMO
Evidentemente, o crescimento global também é responsável por problemas. Ele
produziu toneladas de dinheiro. A combinação de uma inflação baixa e muito
dinheiro significou baixas taxas de juros, e isso fez com que as pessoas
agissem gananciosa e/ou estupidamente. Então, testemunhamos uma série de
bolhas. O crescimento também explica a disparada dos preços de commodities.
Quase todas as commodities estão numa alta recorde de 200 anos. Os alimentos,
que há algumas décadas corriam risco de sofrer um colapso de preços, estão numa
assustadora alta. Nada disso se deve a uma diminuição de abastecimento. É a
crescente demanda global que inflaciona os preços. O fato de mais e mais
pessoas comerem, beberem, lavarem, dirigirem, consumirem terá efeitos sísmicos
no sistema global. Podem ser bons problemas, mas são problemas.
O efeito mais imediato é o surgimento de novos motores econômicos. Nos últimos
séculos, os países mais ricos do mundo têm sido muito pequenos em termos de
população. A Dinamarca tem 5,5 milhões de habitantes, os Países Baixos 16,6
milhões. Os EUA são o maior do grupo e dominaram o avançado mundo industrial.
Outros gigantes, porém – China, Índia e Brasil –, têm sido incapazes ou
relutantes em se juntar às economias funcionais. Agora estão se mexendo e,
dadas suas dimensões, deixarão uma grande pegada no mapa do futuro. Mesmo que
as pessoas nesses países continuem relativamente pobres, como nações sua
riqueza total será maciça. Qualquer número multiplicado por 2,5 bilhões (a soma
das populações da China e da Índia) torna-se um número muito grande.
A ascensão da China e da Índia é apenas a manifestação mais óbvia de um mundo
em ascensão. Em dezenas de países grandes, podem-se ver uma economia
ascendente, uma cultura vibrante e um crescente orgulho nacional. Esse orgulho
pode se transformar em algo mais feio. Para mim, isso ficou vivamente ilustrado
há alguns anos quando conversava com um jovem executivo chinês em Xangai. Ele
trajava roupas ocidentais, falava inglês e estava imerso na cultura pop. Era um
produto da globalização. Até começarmos a falar sobre Taiwan, o Japão e os EUA.
Suas respostas eram cheias de s paixão, belicosidade e intolerância. Senti-me
na Alemanha de 1910, falando com um jovem alemão, que teria sido igualmente
moderno e nacionalista.
Perspectivas nacionais divergentes sempre existiram. Mas hoje, graças à
revolução da informação, elas são amplificadas, repetidas e disseminadas. O
resultado é que o “resto” agora está dissecando as suposições e narrativas do
Ocidente e fornecendo opiniões alternativas. Um jovem diplomata chinês me disse
em 2006: “Quando vocês nos dizem que apoiamos uma ditadura no Sudão para ter
acesso a seu petróleo, pergunto qual a diferença para seu apoio a uma monarquia
medieval na Arábia Saudita? Nós vemos a hipocrisia, só não dizemos nada –
ainda”.
Como conseguir que um mundo de muitos atores trabalhe em conjunto? Os
mecanismos tradicionais de cooperação internacional estão desgastados. O
Conselho de Segurança da ONU tem como membros permanentes os vencedores de uma
guerra que acabou há mais de 60 anos. O G8 não inclui a China, a Índia ou o
Brasil – as três grandes economias que mais crescem no mundo – e mesmo assim
alega representar os propulsores da economia mundial. As únicas soluções que
funcionarão serão as que envolverem muitas nações.
IV. O PRÓXIMO SÉCULO AMERICANO
Muitos olham para este mundo emergente e concluem que os EUA já passaram por
seus dias de glória. Mas, nos últimos 20 anos, os EUA se beneficiaram
maciçamente da globalização. O país desfrutou de um crescimento robusto, baixos
índices de desemprego e inflação, e recebeu centenas de bilhões de dólares em
investimentos. Suas empresas entraram em novos países e indústrias com grande
sucesso, usando cadeias de abastecimento e tecnologia globais para permanecer
na vanguarda da eficiência.
Atualmente, os EUA figuram como a economia mais competitiva do globo, segundo o
Fórum Econômico Mundial. Suas universidades são as melhores do mundo. Em 2004,
a Fundação Nacional de Ciências afirmou que 950 mil engenheiros se formaram na
China e na Índia, enquanto apenas 70 mil se graduaram nos EUA. Se você excluir
os mecânicos e técnicos de carros, que são contados como engenheiros nas
estatísticas chinesas e indianas, os números assumem um aspecto bem diferente.
Os EUA treinam mais engenheiros per capita que qualquer gigante asiático.
Mas o segredo oculto dos EUA é que a maioria desses engenheiros é imigrante.
Estrangeiros e imigrantes compõem quase 50% dos pesquisadores no país. Em 2006,
eles receberam 40% dos ph.Ds. Quando esses graduados se instalam no país, criam
oportunidade econômica. Metade das novas empresas no Vale do Silício tem um
fundador imigrante ou um americano de primeira geração. O potencial para um
novo impulso da produtividade americana não depende de nosso sistema
educacional ou dos gastos com pesquisa e desenvolvimento, mas de nossas
políticas de imigração. Se essas pessoas tiverem permissão e forem encorajadas
a ficar, a inovação acontecerá aqui. Se partirem, elas a levarão junto.
Essa é a grande – e potencialmente insuperável – força dos EUA. O país continua
sendo a sociedade mais aberta e flexível do mundo. O país prospera com a fome e
a energia de imigrantes pobres. Diante das novas tecnologias de companhias
estrangeiras, ou dos mercados em expansão no exterior, ele se adapta e ajusta.
Quando você compara esse dinamismo com as nações fechadas e hierárquicas que no
passado foram superpotências, sente que os EUA são diferentes e que podem não
cair na armadilha de se tornarem ricos, gordos e preguiçosos.
A sociedade americana pode se adaptar a este novo mundo. Mas o governo
americano consegue? O paroquialismo americano está particularmente evidente na
política externa. Economicamente, à medida que outros países crescem, todo
mundo ganha. Mas a geopolítica é uma luta: à medida que outras nações se tornam
mais ativas, elas buscam maior liberdade de ação. Isso implica que a influência
dos EUA declinará. Em vez de ficar obcecados com seus interesses de curto
prazo, a prioridade americana deveria ser trazer as forças emergentes para o
sistema global. Se a China, a Índia, a Rússia e o Brasil sentirem que
participam da ordem global, haverá menos perigo de guerra, depressão, pânicos e
colapsos.
Os americanos – especialmente o governo americano – não entenderam de fato a
ascensão do resto. É um dos acontecimentos mais emocionantes da História.
Bilhões de pessoas escapando da pobreza abjeta. O mundo será enriquecido e
enobrecido à medida que elas se tornarem consumidores, produtores, inventores,
pensadores, sonhadores, fazedores. Tudo isso está acontecendo por causa de
idéias e ações americanas. Durante 60 anos, os EUA incentivaram países a abrir
seus mercados, a liberar suas políticas, a abraçar o comércio e a tecnologia.
Justamente quando eles começam a fazê-lo, estamos perdendo a fé nessas idéias.
Ficamos desconfiados do comércio, da abertura, da imigração e do investimento
porque agora não se trata de americanos indo para o exterior, mas de
estrangeiros indo para os EUA. Daqui a algumas gerações, quando os historiadores
escreverem sobre esses tempos, poderão notar que, na virada do século XXI, os
EUA tiveram sucesso em sua grande histórica missão – globalizar o mundo. Não
queremos que eles escrevam que ao longo do caminho os próprios EUA esqueceram
de se globalizar.
(texto extraído de Fareed Zakaria)
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